Existe legalidade no protesto e inscrição de dívida não paga no período da pandemia do Covid-19?

Por: Cristiano Medeiros de Castro e Luís Eduardo Veiga

Como é de conhecimento comum, a Pandemia do Covid-19 tem afetado todas as camadas da população, visto o aumento do desemprego e a redução de faturamento de muitas empresas.

Com isso, fica uma questão ainda indefinida se os consumidores ou empresas que contraíram dívidas anteriores, mas ficaram impossibilitadas de continuarem com o pagamento neste período, terem os seus negativados ou dívidas protestadas sem que exista culpa ou dolo para o inadimplemento?

Outra grande questão são os efeitos que o protesto e a negativação possuem na vida das pessoas e das empresas, pois basta uma restrição ou protesto em muitos casos, que bancos ou instituições similares vedem o empréstimo, afetando a sobrevivência daqueles que estão com o nome negativado ou protestado sem qualquer culpar legítima.

Infelizmente, cumpre destacar que a possibilidade de empréstimo para que tal situação não ocorra não é o usual no Estado Brasileiro. Veja que muitas empresas e micro empresários, até a data de 12 de junho, não conseguiram proceder com os empréstimos prometidos para dar alívio ao comércio e pagar as dívidas. Para tanto, recorta-se um trecho de matéria jornalística sobre o assunto:

“Uma auditoria apresentada nesta terça, com dados de 16 de março a 12 de junho, aponta que as micro e pequenas empresas acessaram menos de 10% de todo o crédito bancário liberado no período.

“O segmento de micro e pequenas empresas foi o menos assistido. Apenas R$ 47,6 bilhões, e aqui é o ponto mais preocupante do ponto de vista social, de um total de R$ 533 bilhões. Menos de 10% do total das linhas de crédito dessas novas operações foram concedidas a esse segmento”, disse Dantas.”[1]

Com essas premissas, onde as empresas e pessoas escolhem o que é essencial pagar, somado a dificuldade de acesso ao crédito, é certo dizer que a ausência de culpa pelo inadimplemento é presumida, motivo que se questiona a legalidade e a justiça do ato de restrição e protesto de dívida ocorrida neste período.

Partindo primeiro do campo legal, infelizmente tão questão é silente nas leis existentes e inexiste qualquer regulamentação que restrinja a inscrição de dívidas e protestos por inadimplemento oriundo deste período pandêmico.

O Senado Federal e a Câmara dos Deputados, com o intuito de normatizarem a questão e evitando, assim, a insegurança jurídica oriunda pela falta de regulamentação,  aprovaram o projeto de lei nº 675/2020 o qual impedia a inscrição nos cadastros das empresas, conforme ementa:

“Suspende retroativamente e impede novas inscrições nos cadastros de empresas de análises e informações para decisões de crédito enquanto vigente a calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19.”.[2]

O referido projeto de lei não chegou a vigorar, visto o veto total do texto pelo Sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro por meio da mensagem nº 371 de 30 de junho de 2020.

Em suas motivações para vetar o projeto de lei nº 675/2020 em sua integralidade, foram proferidas as seguintes justificativas: (i) a possibilidade de gerar insegurança jurídica; (i) a possibilidade de revisão de atos jurídicos perfeitos; (iii) potencialidade de lesão ao funcionamento do mercado de crédito, pois afetará a análise de risco das instituições de empréstimo; (iv) aumento de juros oriunda da ausência da não restrição; (v) medida protetiva que pode incentivar o inadimplemento e permitir o superendividamento. Para mais, segue a integralidade do motivo do veto presidencial:

“A propositura legislativa, gera insegurança jurídica ao possibilitar a revisão de atos e relações jurídicas já consolidadas em potencial ofensa à garantia constitucional do ato jurídico perfeito previsto no inciso XXXVI, do art. 5º, da Constituição da República. Além disso, contraria o interesse público ante a potencialidade da medida em prejudicar o funcionamento do mercado de crédito e a eficiência dos sistemas de registro, pois com as limitações em sua capacidade de análise do risco de crédito dos tomadores de maneira precisa, os ofertantes tendem a adotar comportamento mais conservador que se refletirão em desvios no mercado, gerando taxas de juros elevadas e restrições de oferta, o que poderia violar o princípio constitucional da livre iniciativa, fundamento da República, nos termos do art. 1º da Carta Constitucional, bem como o da livre concorrência, insculpido no art. 170, caput, IV, da Constituição da República. Ademais, ao se suprimir um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas entre as partes, por um prazo substancialmente longo, de forma a dar proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, estaria se promovendo um incentivo ao inadimplemento e permitindo o superendividamento.” 

Então, não analisando o mérito do veto do Sr. Presidente Jair Messias Bolsonaro, inexiste atualmente qualquer lei ou regulamentação em vigor que vede tal prática, podendo no ponto de vista meramente legal, a inserção do nome dos devedores nos Órgãos de restrição ao crédito e o protesto de título.

Agora, partindo do campo principiológico, das teorias jurídicas e da leitura dialética das leis existentes, é possível que exista limite a inscrição ou o protesto de dívidas, evitando assim que o devedor seja prejudicado, com todas as penalidades impostas, por situação o qual não tem culpa.

Com base na teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva, todos os contratos, sendo eles consumeristas ou não, devem atender a justiça social e a proporcionalidade de sacrifícios, inibindo condutas exploratórias e enriquecimento ilícitos de uma das partes.

Nestes termos, caso ocorra fato improvável e que afete de tal maneira o equilíbrio contratual deve, por medida de justiça, ser equacionada a situação contratual com o fulcro de manter a relação jurídica existente. 

O código de processo civil descreve em seu artigo 393 que o devedor não responde por prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior:

“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”.[3]

Pode ser também verificado tal hipótese no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(…)

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”.

Do mesmo modo, o referido códex civil também aduz em outros artigos que quando vier desproporção manifesta da prestação devida a uma das partes, poderá o judiciário alterá-la para manter a proporcionalidade.

“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

(…)

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. (grifo nosso).”.[4]

Analisando o panorama geral da crise, percebe-se que somente o devedor, pequenos empresas, família e outros sujeitos sofrem com a diminuição de renda em sentido lato, o que afetou de sobremaneira diversas relações contratuais sem que muitos não tivessem qualquer culpa pelo fato.

Visto o excessivo ônus de apenas uma das partes em cumprir com as obrigações, muitas vezes o devedor neste caso, que não tem acesso ao crédito, que depende da liberalidade do credor para negociar e que cujas fontes de manutenção se esvaziaram, surtirá todas as penalidades por situação o qual não deu causa, o que pode afetar de sobremaneira a sua vida.

Antes de adentrar a algumas decisões, cumpre destacar que o protesto e a inscrição nos órgãos de restrição de crédito não afetam somente a honra do devedor, mas o tolhe de eventual acesso ao crédito.

Imagine a hipótese de uma empresa que, tentando manter-se ativa e prezando pela manutenção dos empregos, não consegue renegociar as dívidas com o credor, e, ante a negativa de acordo, ainda vê o seu nome protestado ou inscrito nos órgãos de restrição.

Agora imaginemos a hipótese que quando ocorrer o protesto e a empresa, para tentar manter-se ativa, necessite de crédito. É de conhecimento geral que as chances de o obter são baixas e, como consequência, poderá vir a falência. A penalidade aplicada cujo dano não era tão excessivo, neste momento de pandemia tornou-se situação que pode determinar entre a manutenção de uma empresa ou não.

O mesmo pode ocorrer com uma pessoa física, onde ao necessitar de empréstimo por alguma situação urgente, não conseguir por estar inscrita nos Órgãos de Restrição ao crédito.

O judiciário, não possuindo nenhum parâmetro legal para estes casos, em especial após o veto presidencial, não tem uma posição unívoca, gerando entendimentos e decisões conflitantes em casos cujas situações são semelhantes entre si.

Á título de exemplo, analisou-se neste breve artigo algumas decisões proferidas no estado de São Paulo, uma sendo concedida decisão de tutela para a sustação do protesto e a outra em sua negativa.

No primeiro caso, trata-se de ação ajuizada por dono de estabelecimento de restaurante que requereu em sede de tutela de urgência a sustação do protesto em seu nome. O pedido de tutela foi negado na primeira e na segunda instância, sendo mantido o protesto, conforme destaque abaixo: 

TUTELA DE URGÊNCIA – Sustação de protestos – Indeferimento da liminar pelo D. Juízo a quo – Insurgência da autora – Descabimento – Débito contraído por restaurante com empresa fornecedora de insumos – Alegação do autor de inviabilidade do pagamento, em razão do fechamento temporário do estabelecimento comercial, por força da pandemia do Covid-19 – Ausência de elementos mínimos que demonstrassem a incapacidade do requerente de arcar com o pagamento da dívida – Documentos coligidos aos autos que não permitem verificar a dimensão dos prejuízos sofridos pela parte em razão da pandemia – Hipótese em que não restou demonstrado que a ré foi comunicada da proposta de acordo descrita na petição inicial – Razoabilidade do indeferimento, a fim de se privilegiar o contraditório e a solução consensual da controvérsia – RECURSO NÃO PROVIDO.

(…)

2. Indefiro a tutela de urgência. Embora não se desconheça a crise financeira que já atinge grande parte das empresas, em razão da quarentena, não se pode admitir a interferência pura e simples do Judiciário nas relações jurídicas, em prejuízo da outra parte, seja alterando as condições contratuais, seja ao impor um acordo. Desse modo, eventual protesto ou negativação, neste caso, não parece ilegal, de modo que o pedido de tutela de urgência fica indeferido.

(TJ-SP – AI: 20818799720208260000 SP 2081879-97.2020.8.26.0000, Relator: Renato Rangel Desinano, Data de Julgamento: 16/07/2020, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/07/2020)

O Tribunal adotou postura mais conservadora neste caso, pois entendeu em manter a relação contratual original e a ingerência judiciária em contrato que inexistem vícios. Assim, ao analisar sobre a legalidade do contrato e da vontade das partes no momento de sua celebração, todas as medidas e penalidades oriundas do inadimplemento são legalmente válidas.

Por outro vértice, o mesmo Tribunal de Justiça, ao analisar outro caso em hipótese similar, entendeu por aplicar o direito não só analisando a relação contratual somente, mas sim a afetação do objeto por hipóteses externas ocasionados pelo Covid-19. Nesta toada, o Tribunal decidiu em conceder a tutela de sustação no prazo de 60 (sessenta dias) e, para que exista a manutenção, a prestação de caução:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Ação declaratória de inexigibilidade provisória de título – Decisão que indefere pedido de tutela de urgência tendente a determinar a sustação (ou suspensão dos efeitos publicísticos) dos protestos dos títulos objeto da lide – Os efeitos da pandemia COVID-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, no que tange à redução de capacidade financeira em decorrência das medidas ditadas pelo Decreto Estadual nº 64.881, de 22 de março de 2020, demanda exame individual, cabendo ao devedor, pessoa jurídica, demonstrar sumariamente, no mínimo, cessação ou redução de receitas e de fluxo de caixa para se aferir se daquele imprevisível resulta caracterizado fato extraordinário passível de ingerência nas relações com credores no que tange a suspensão e postergação de obrigação de pagar, do contrário prevalecendo ato de cobrança e de constituição em mora – Demonstração satisfatória dos requisitos exigidos – Deferimento da tutela por 60 dias e de manutenção condicionada à prestação de caução – Decisão modificada – Recurso provido, com determinação.

(TJ-SP – AI: 21194093820208260000 SP 2119409-38.2020.8.26.0000, Relator: José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto, Data de Julgamento: 09/06/2020, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 09/06/2020)

Também há causa interessante veiculado pelo meio de notícias jurídicas Migalhas.com.br, onde a magistrada da 1ª vara Cível de Bauru do Estado de São Paulo concedeu tutela para sustar o protesto da dívida, sob a condição de depositar 30% sobre o valor da dívida:

“Considerando a situação econômica e social excepcional e imprevisível em decorrência da pandemia do novo coronavírus, que ocasionou a suspensão de grande parte das atividades econômicas no país, notadamente a mobilidade das pessoas, o que gerou a redução do consumo de combustível, a magistrada entendeu que a atividade comercial que o autor desenvolve foi diretamente afetada.

A juíza argumentou, ainda, que os documentos presentes nos autos comprovam que o autor iniciou tratativa com o réu visando renegociar os débitos, mas não houve acordo.

Na avaliação da magistrada, ficou demonstrado que a devedora pretende quitar os débitos, mas, diante das atuais circunstâncias, não tem possibilidade de realizar o pagamento integral, se propondo a pagar parceladamente, garantindo a funcionalidade de sua empresa, com manutenção de empregos.

Diante disso, a juíza determinou, por meio da tutela de urgência, a suspensão dos protestos e deu prazo de 24 horas para a empresa devedora depositar 30% do valor devido, sob pena de revogação da liminar.

A magistrada estipulou, ainda, que o saldo remanescente deverá ser pago em até seis parcelas, se antes disso não for julgado o mérito, sendo que o primeiro depósito tem de ser feito em 30 dias.”.[5]

A juíza, ao enfrentar o tema e sensível aos danos incorridos pela Pandemia do Covid-19, destacou a vontade do devedor em pagar a dívida, mas ante a impossibilidade de minoração da receita da empresa, ficou impossibilitada de adimplir o contrato.

Logo, não é possível prever em nenhuma hipótese qual será a posição adotada pelo magistrado singular e pelo Tribunal ao enfrentar tais questões, pois inexiste qualquer parâmetro legal para os magistrados, sendo as decisões proferidas com a aplicação de princípios a cada caso concreto.

Portanto, quanto à primeira resposta a resolução, não existe óbice legal aos credores para protestar dívidas ou inserir o nome dos órgãos de restrição ao crédito, em especial após o veto total do Sr. Presidente Jair Messias Bolsonaro ao Projeto de Lei nº 675/2020.

Contudo, caso exista risco eminente a inviabilizar a vida, seja da empresa ou da pessoa física pelo protesto ou inscrição aos Órgãos de Restrição ao Crédito, pode ser possível ajuizar ação para tanto.

O que se tem de certo é que para que o devedor tenha o direito a pleitear na justiça tal benesse, deve demonstrar a diminuição de receita oriunda deste período e os riscos que a restrição pode ocasionar.

Veja que mesmo se provado que a restrição foi oriunda do período pandêmico e causa grave riscos a vida da empresa ou da pessoa, não é certo que a decisão seja favorável, pois o julgador tem livre convencional ao julgar, podendo decidir em manter a vontade das partes originárias ou, em hipótese contrária, alterar o contrato e as penalidades de modo a tender a equidade por questões que somente ocorreram neste período pandêmico.

Assim, pode o credor utilizar-se deste direito sem que incorra em qualquer ilegalidade. O essencial seria a realização de acordo com o intuito de preservar a relação originária e minorar os danos, de fato superveniente, sofrida por apenas a uma das partes.

Caso não seja possível o acordo e incorra o protesto ou a inscrição, é possível ajuizar ação para sustar o ato, mas existe o risco da não frutificação da demanda a depender do posicionamento do juiz da causa e da sensibilidade do julgador das mazelas ocasionadas pela Pandemia do Covid-19.

Referencias

https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/07/dados-mostram-a-dimensao-historica-do-impacto-da-covid-19-na-economia-ckci1t1z9002i01ja8xgo1nz8.html

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/01/bolsonaro-veta-suspensao-de-cadastro-negativo-durante-pandemia

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141819

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VET/VET-371.htm

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/15/dificuldade-de-acesso-de-micro-e-pequenas-empresas-ao-credito-e-preocupante-diz-ministro-do-tcu.ghtml

https://www.migalhas.com.br/quentes/331116/pandemia-juiza-suspende-protestos-e-garante-parcelamento-de-divida-de-empresa

https://www.migalhas.com.br/quentes/326308/metalurgica-tem-protestos-de-titulo-suspensos-em-razao-da-pandemia

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm

www.jusbrasil.com.br


[1] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/15/dificuldade-de-acesso-de-micro-e-pequenas-empresas-ao-credito-e-preocupante-diz-ministro-do-tcu.ghtml

[2] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141819

[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

[4] Idem.

[5] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/331116/pandemia-juiza-suspende-protestos-e-garante-parcelamento-de-divida-de-empresa

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