Não é novidade que as empresas que dependem dos serviços alfandegários brasileiros enfrentam sérios obstáculos relacionados à morosidade no desembaraço de suas mercadorias. As frequentes e prolongadas greves dos auditores fiscais já se tornaram, infelizmente, parte da rotina de quem atua com importações. Essas empresas desempenham um papel fundamental na economia e na sociedade brasileira, e são essenciais para o funcionamento adequado de diversos setores estratégicos do país.
Nesse contexto, paralisações como a recentemente promovida pela Receita Federal não apenas comprometem o fluxo logístico nacional, mas também impõem uma camada adicional de encargos ao já oneroso “custo Brasil”. Isso ocorre porque a retenção prolongada das mercadorias gera custos expressivos no processo de nacionalização de bens e produtos.
Diante da omissão do Estado em cumprir com a devida celeridade suas atribuições no processo aduaneiro, muitas empresas se veem obrigadas a buscar locais para armazenar suas cargas enquanto aguardam a conclusão da burocrática tramitação, a qual, em períodos de greve, torna-se ainda mais demorada do que o habitual.
O cenário, portanto, é de total insegurança: as empresas, dependem que o órgão responsável pela fiscalização decida parar seus movimentos grevistas e retomem a sua rotina para que só então, a empresa possa ter seu bem nacionalizado, e nesse interim, continua arcando com os custos de armazenagem, seguro e transporte.
Diante desse ciclo vicioso, muitas empresas começam a questionar: é possível recorrer ao Poder Judiciário para assegurar a prestação adequada e tempestiva do serviço público? Afinal, existe um prazo legal para a realização do desembaraço aduaneiro? E, em caso de descumprimento, pode a Administração Pública ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes dessa morosidade?
A resposta, ao menos sob o aspecto jurídico, é clara.
O despacho aduaneiro, previsto no artigo 542 do Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro), consiste justamente na verificação da regularidade dos dados declarados pelo importador, dos documentos apresentados e da mercadoria em si. Trata-se, portanto, de etapa indispensável para a continuidade das operações comerciais e que, por isso, deve ser concluída dentro de um prazo razoável. Caso contrário, configura-se a mora da Administração Pública.
Nesse sentido, o Decreto nº 70.235/1972, que rege o processo administrativo fiscal, prevê no artigo 4º que, salvo disposição contrária, o servidor público deve praticar os atos processuais no prazo de oito dias. Embora o Regulamento Aduaneiro não estabeleça prazo específico para o despacho aduaneiro, a jurisprudência tem aplicado esse prazo genérico de oito dias por analogia ao procedimento de conferência aduaneira, desde que toda a documentação exigida tenha sido corretamente apresentada.
De acordo com decisões recentes dos tribunais, esse prazo deve ser contado a partir do recebimento integral dos documentos pelo Fisco, independentemente da complexidade do canal de conferência (verde, amarelo ou vermelho). A jurisprudência é clara ao reconhecer que o descumprimento desse limite, mesmo em casos de greve ou operação-padrão, configura mora administrativa e dá direito ao importador de obter a liberação judicial da mercadoria.
Um exemplo emblemático foi o recente julgamento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que confirmou o direito de uma empresa ao desembaraço imediato de suas mercadorias, mesmo em meio à greve dos auditores fiscais. No caso, a Administração não respeitou o prazo de oito dias para conclusão do despacho aduaneiro, ensejando a concessão da ordem judicial. Os desembargadores foram categóricos ao afirmar que o direito de greve dos servidores não pode inviabilizar o exercício de atividades econômicas essenciais, como a importação de insumos, sob pena de violação aos princípios constitucionais da razoabilidade, eficiência e proporcionalidade.
Além disso, o próprio Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido os limites do direito de greve no setor público, especialmente quando se trata de atividades consideradas essenciais. Em decisão recente, o ministro Benedito Gonçalves suspendeu uma paralisação dos auditores fiscais justamente por entender que o movimento comprometia serviços essenciais e infringia o artigo 13 da Lei nº 7.783/1989.
Mesmo assim, a retomada das atividades tem ocorrido de forma lenta, marcada por uma morosidade excessiva que, na prática, prolonga o tempo de análise das declarações de importação.
Diante de todo esse cenário, as empresas vêm procurando o patrocínio de seus advogados para i) a liberação imediata da mercadoria caso ultrapassados os oito dias, e na maioria das vezes, alcançando êxito com a medida ou ii) pedido de ressarcimento dos valores empregados em armazenagem/seguro e proteção de mercadorias, quando passado dos oito dias previstos no decreto.
O último pedido, como dissemos, diante da inércia estatal, restam às empresas buscarem alternativas para alocar seus produtos, como a contratação de armazéns especializados para guardar as mercadorias até o fim do processo aduaneiro ou mesmo gastos com demurrage (valor cobrado pela mora na devolução do contêiner), arcando integralmente com esse ônus, mesmo quando a situação decorre de falhas no serviço público.
Diante desse contexto, é fundamental destacar que a atuação da Administração Pública, inclusive no âmbito aduaneiro, está sujeita ao regime de responsabilidade objetiva previsto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. Em outras palavras, a União responde pelos danos causados por seus agentes no exercício de suas funções, independentemente de dolo ou culpa.
Essa responsabilidade decorre da teoria do risco administrativo, que impõe ao Poder Público o dever de indenizar os particulares sempre que houver prejuízo decorrente de sua atuação lesiva, desde que demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta administrativa e o dano sofrido.
Assim, quando agentes públicos, no desempenho de suas funções, retardam injustificadamente o trâmite do despacho aduaneiro, configurando verdadeira mora administrativa, ficam preenchidos todos os requisitos para a responsabilização objetiva da União.
A morosidade na liberação das mercadorias, sem justificativa idônea ou fundamentação fiscal adequada, gera impactos diretos ao importador, que se vê obrigado a arcar com custos de armazenagem, demurrage e, por vezes, ainda sofre prejuízos contratuais e operacionais, afetando diretamente sua atividade econômica.
Nesse cenário, é evidente o dever da Administração de reparar tais danos. Afinal, não havendo justificativa plausível para o atraso superior a oito dias após o registro da Declaração de Importação, a responsabilidade estatal torna-se inequívoca, como reconhecem diversos precedentes judiciais.
De acordo com os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, aquele que causar dano a terceiro por ato ilícito ou abuso de direito deve reparar integralmente o prejuízo. Esse entendimento tem sido reiteradamente confirmado pelos tribunais:
“[…] Inexistindo prazo específico para os atos que compõem o despacho aduaneiro, deve ser observado o prazo de oito dias, estabelecido pelo art. 4º do Decreto 70.235/1972. Tendo extrapolado, injustificadamente, esse prazo, a União deve indenizar os gastos da parte autora com armazenagem e demurrage, proporcionalmente aos dias de atraso […].” (TRF4, AC 5014261-15.2015.404.7208, 2ª Turma, Rel. Luciane Amaral Corrêa Münch, julgado em 24/05/2017)
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente (REsp 2.002.917/SC, julgado em 30/05/2022), reforçou esse entendimento, reconhecendo que o importador tem direito à indenização pelos custos decorrentes da demora imotivada no despacho aduaneiro, incluindo despesas de armazenagem e demurrage. Conforme destacou o relator:
“Conforme estabelecido pelos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil, aquele que, por ação ou omissão, cometer um ato ilícito ou, no exercício abusivo de um direito, causar dano a outro, fica obrigado a repará-lo. E, na linha de pacífico entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva, e depende dos seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. A propósito, o STF tem decidido pela responsabilidade objetiva, mesmo nos casos de omissão do ente estatal, à luz do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se exigindo a demonstração de culpa ou dolo do agente púbico.
[…]
Com efeito, a situação fática descrita pelo acórdão recorrido revela o fato de a parte autora ter suportado despesas, maiores do que aquelas que seriam devidas normalmente, em razão de o procedimento de desembaraço aduaneiro ter-se prolongado de forma imotivada, de tal sorte que estão presentes a conduta omissiva, o nexo e o dano.”
Assim, além do direito ao desembaraço imediato, também surge o direito à indenização pelos prejuízos suportados, reforçando que a prestação eficiente dos serviços públicos não é uma opção, mas uma obrigação legal e constitucional.
Portanto, uma forma de se adaptar a essa dura realidade brasileira seria o socorro ao poder judiciário, como forma de manutenção da regularidade nos fluxos mercantis e reparação dos eventuais danos sofridos em razão dessa falha na prestação do serviço público.
Nossa prática de Direito Tributário está à disposição para dirimir eventuais dúvidas ou prestar maiores esclarecimentos sobre o tema.